Depois de ter fechado em Lisboa o acordo político sobre o novo Tratado europeu, José Sócrates decidiu que o texto final será assinado a 13 de Dezembro de manhã, no Mosteiro dos Jerónimos.
Logo a seguir, os lideres dos Vinte e Sete e respectivas comitivas, em conjunto com os presidentes da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, terão de saltar para os seus aviões e voar para Bruxelas, de modo a poderem participar na tradicional cimeira de chefes de estado ou de governo de Dezembro, que arranca à tarde.
Durante a última cimeira (18 e 19 de Outubro, em Lisboa), pelo menos a chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel (na fotografia com José Sócrates), queixou-se do quebra-cabeças logístico implícito neste vaivém entre as capitais-europeias-Lisboa-Bruxelas. O que levou imediatamente o primeiro ministro português a sugerir que a cimeira se realizasse igualmente em Lisboa, ao contrário do que é a regra. Poupava-se tempo, dinheiro e emissões de CO2, justificou então a presidência portuguesa da UE.
Não são claras as razões que levaram Sócrates a marcar a assinatura para dia 13 - a menos que procurasse por essa via, precisamente, forçar a realização da cimeira em Lisboa. Isso é que era, poder encerrar a "sua" presidência europeia, a última assumida por Portugal, com um grande acontecimento mediático!
Mas não é que o seu homólogo belga lhe estragou os planos ? Pois: Guy Verhofstadt invocou o acordo firmado pelos lideres europeus em Nice, em 2000, que impôs a realização em Bruxelas de todas as cimeiras regulares da UE a partir de 2002 (e já não no país detentor da presidência europeia). Acordos são acordos e são para ser cumpridos, defenderam os belgas. E Verhofstadt disse à Agência Reuters: "A próxima cimeira terá sem qualquer dúvida de se realizar em Bruxelas". Ou seja, como de costume, no edifício Justus Lipsius (na fotografia).(A última cimeira de Outubro teve um estatuto "informal" o que permitiu a sua realização em Lisboa).
As coisas talvez fossem mais simples se o Tratado fosse assinado noutra altura. Ou melhor, do ponto de vista da racionalidade, no próprio dia 13 mas em Bruxelas, logo antes do início da cimeira de lideres. Isso, só por si, não lhe retiraria o nome de Lisboa que Sócrates tanto parece querer garantir: os Tratados tanto podem ter o nome do local onde são acordados, como o do local onde são assinados, tudo depende da decisão dos governos dos Vinte e Sete.
Mas não: o primeiro ministro está mesmo decidido a garantir que todos os eventos ligados ao Tratado decorrem em Lisboa. Essa será a melhor garantia de que a sua cara aparecerá no centro de todas as fotografias oficiais do dito, enquanto anfitrião da cerimónia solene. Talvez isso permita que o seu nome fique de alguma forma ligado à história da UE. Mesmo que para isso tenha de pôr de lado o seu discurso oficial sobre o combate às alterações climáticas...
terça-feira, 30 de outubro de 2007
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
Interesses nacionais
É um fenómeno curioso, esta coisa dos interesses nacionais. Cada país tem os seus, e muitas vezes define-se por eles.
Os ingleses são os campeões dos ditos. Na última cimeira europeia, em Lisboa, os jornalistas britânicos divertiram-se a contar as vezes que o seu primeiro ministro, Gordon Brown, utilizaria a expressão “interesses nacionais”. Em duas conferências de imprensa, foram mais de 30 vezes, para assegurar que estavam bem salvaguardados no novo Tratado europeu. A boa notícia é que no meio do pensamento único da imprensa tablóide, sempre há algumas vozes discordantes – entre jornalistas, deputados ou diplomatas – e a contra-corrente do eurocepticismo ambiente.
Não foi nada disso que aconteceu com a Itália no seu combate por mais um ou dois eurodeputados. Nesse caso, a totalidade dos eleitos no PE, da esquerda à extrema-direita, e da imprensa – pelo menos aquela que tem correspondentes em Bruxelas colocou-se atrás do governo de Romano Prodi. Todos, sem excepção, gritaram indignados contra a afronta feita, imagine-se!, a um país fundador da UE. Todos, igualmente, bateram-se com igual vigor pelos interesses nacionais.
E, no entanto, Prodi tinha participado na decisão unânime dos lideres da UE quando, em Junho passado, pediram ao PE para lhes propôr uma repartição dos seus futuros 750 membros (contra 785 hoje) entre os Vinte e Sete, com base no princípio da proporcionalidade degressiva. Nessa altura, nada a dizer.
Quando o PE apareceu com uma proposta que, por via das diferenças de população, dava à Itália menos um deputado que ao Reino Unido, e menos dois que à França, caiu o Carmo e a Trindade. Ou, se quiserem, o Coliseu e a Torre de Pisa.
A vaga de indignação nacional não foi provocada pelo facto de a Itália ter perdido deputados – de facto, não perdeu relativamente aos 72 que já estavam previstos no Tratado de Nice. O problema estava no facto de ter menos deputados do que os dois países com que gosta de se comparar.
Só nessa altura – ou seja, uma semana antes da cimeira de Lisboa – é que os italianos se lembraram de invocar a questão da cidadania. O cálculo da repartição dos eurodeputados, afirmavam, devia ser feito com base nos cidadãos e não na população residente. No plano dos princípios, até podem ter razão, porque o Tratado afirma que o PE representa os cidadãos europeus. Mas a verdade é que os italianos só se lembraram quando perceberam que o critério da população os prejudicava relativamente à França e Reino Unido.
O problema está em que não existe na UE nem um conceito uniforme de cidadania – cada país define quem, no seu território, pode ou não votar para o PE – nem, sobretudo, estatísticas fiáveis na matéria. Todas as decisões são, e sempre foram, baseadas na população – desde os cálculos dos eurodeputados ou dos votos ponderados no conselho de ministros europeu, até à repartição dos fundos estruturais.
Não havendo estatísticas fiáveis, os italianos defendiam que a questão deveria ser deixada para decidir mais tarde, alegando que o novo sistema de votações por dupla maioria de votos no conselho de ministros da UE também só entrará em vigôr a partir de 2014. Também aqui poderiam ter um argumento a seu favor, mas nenhum dos outros países pareceu disposto a fazer-lhes o favor.
No fim da cimeira de Lisboa, Prodi voltou para casa com mais um eleito. E o PE ficou com “750 deputados mais o presidente”. Não foi um combate glorioso, mas a honra dos italianos ficou salva.
Os ingleses são os campeões dos ditos. Na última cimeira europeia, em Lisboa, os jornalistas britânicos divertiram-se a contar as vezes que o seu primeiro ministro, Gordon Brown, utilizaria a expressão “interesses nacionais”. Em duas conferências de imprensa, foram mais de 30 vezes, para assegurar que estavam bem salvaguardados no novo Tratado europeu. A boa notícia é que no meio do pensamento único da imprensa tablóide, sempre há algumas vozes discordantes – entre jornalistas, deputados ou diplomatas – e a contra-corrente do eurocepticismo ambiente.
Não foi nada disso que aconteceu com a Itália no seu combate por mais um ou dois eurodeputados. Nesse caso, a totalidade dos eleitos no PE, da esquerda à extrema-direita, e da imprensa – pelo menos aquela que tem correspondentes em Bruxelas colocou-se atrás do governo de Romano Prodi. Todos, sem excepção, gritaram indignados contra a afronta feita, imagine-se!, a um país fundador da UE. Todos, igualmente, bateram-se com igual vigor pelos interesses nacionais.
E, no entanto, Prodi tinha participado na decisão unânime dos lideres da UE quando, em Junho passado, pediram ao PE para lhes propôr uma repartição dos seus futuros 750 membros (contra 785 hoje) entre os Vinte e Sete, com base no princípio da proporcionalidade degressiva. Nessa altura, nada a dizer.
Quando o PE apareceu com uma proposta que, por via das diferenças de população, dava à Itália menos um deputado que ao Reino Unido, e menos dois que à França, caiu o Carmo e a Trindade. Ou, se quiserem, o Coliseu e a Torre de Pisa.
A vaga de indignação nacional não foi provocada pelo facto de a Itália ter perdido deputados – de facto, não perdeu relativamente aos 72 que já estavam previstos no Tratado de Nice. O problema estava no facto de ter menos deputados do que os dois países com que gosta de se comparar.
Só nessa altura – ou seja, uma semana antes da cimeira de Lisboa – é que os italianos se lembraram de invocar a questão da cidadania. O cálculo da repartição dos eurodeputados, afirmavam, devia ser feito com base nos cidadãos e não na população residente. No plano dos princípios, até podem ter razão, porque o Tratado afirma que o PE representa os cidadãos europeus. Mas a verdade é que os italianos só se lembraram quando perceberam que o critério da população os prejudicava relativamente à França e Reino Unido.
O problema está em que não existe na UE nem um conceito uniforme de cidadania – cada país define quem, no seu território, pode ou não votar para o PE – nem, sobretudo, estatísticas fiáveis na matéria. Todas as decisões são, e sempre foram, baseadas na população – desde os cálculos dos eurodeputados ou dos votos ponderados no conselho de ministros europeu, até à repartição dos fundos estruturais.
Não havendo estatísticas fiáveis, os italianos defendiam que a questão deveria ser deixada para decidir mais tarde, alegando que o novo sistema de votações por dupla maioria de votos no conselho de ministros da UE também só entrará em vigôr a partir de 2014. Também aqui poderiam ter um argumento a seu favor, mas nenhum dos outros países pareceu disposto a fazer-lhes o favor.
No fim da cimeira de Lisboa, Prodi voltou para casa com mais um eleito. E o PE ficou com “750 deputados mais o presidente”. Não foi um combate glorioso, mas a honra dos italianos ficou salva.
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
Cimeira de Lisboa
Cá chegámos ao momento que é suposto encerrar dez anos de discussões institucionais na UE. Ninguém tem grandes dúvidas de que a cimeira de Lisboa que começa ao fim da tarde vai desembocar num acordo sobre o novo Tratado - a questão é saber quando. Porque ainda há dois grandes e difíceis temas em aberto, levantadaos pela Itália (a repartição dos deputados europeus) e Polónia (o famoso compromisso de Ioanina). Mas Sócrates já anunciou hoje que o texto será aprovado nas próximas horas, e que se chamará Tratado de Lisboa. Grande novidade, que este blog já tinha anunciado em Junho ;-)
Vale a pena lembrar os últimos dez anos de discussões institucionais para se perceber o contexto. Por isso, não resisto a pôr aqui o texto que escrevi no Público de hoje sobre o que esteve em causa desde 1997 (desculpem a repetição...)
.....
De Amesterdão a Lisboa, passando por Nice, a difícil procura do equilíbrio entre o peso relativo dos Estados
De Amesterdão a Lisboa: as raízes do novo Tratado da União Europeia (UE) foram lançadas há dez anos, em Amesterdão, no quadro de uma tentativa falhada dos líderes dos então 15 Estados-membros de reformar em profundidade as instituições comunitárias.
Em 1997, os grandes países procuravam reforçar o seu peso relativo no conselho de ministros europeu (o principal órgão de decisão, embora cada vez mais em conjunto com o Parlamento Europeu), de modo a compensar a erosão de que se sentiam vítimas em resultado dos alargamentos sucessivos da UE.
Para isso, defendiam, era necessário encontrar um novo equilíbrio entre os princípios da igualdade entre os Estados e da representação democrática.
Na fundação da UE, a questão tinha sido resolvida com a invenção de um sistema de votos ponderados atribuídos a cada país consoante a sua dimensão. Um sistema cuja principal característica era garantir a sobrerepresentação dos mais pequenos.
A perspectiva do grande alargamento da UE ao Leste pôs a nu os limites deste mecanismo: na Europa a seis, os grandes países (França, Alemanha e Itália) eram metade dos Estados-membros; com 27, os seis grandes (estes três mais o Reino Unido, Espanha e Polónia), que reúnem 70 por cento da população da UE, passariam a ser pouco mais de um quinto do total dos Estados.
Ao mesmo tempo, a população representada numa decisão por maioria qualificada no conselho de ministros passou de 68 por cento em 1957, para 58 por cento em 1995. Sem uma reforma, voltaria a descer para 50 por cento na UE a 27.
Ao pôr em questão a legitimidade democrática das decisões europeias, esta situação ressuscitou o velho debate sobre a forma de conciliar a igualdade entre os Estados e a representação democrática. Que provocou, inevitavelmente, um confronto entre os grandes e os pequenos países. Confronto que ficou largamente por resolver na cimeira de Junho de 1997, em Amesterdão, que acordou o Tratado do mesmo nome.
A reivindicação dos grandes países de obter um reforço dos seus votos ponderados no conselho de ministros saiu reforçada com a decisão então tomada de reduzir a Comissão Europeia a um nacional por Estado-membro (acabando com o segundo comissário a que os grandes países tinham direito). Mas, perante o impasse, de Amesterdão saiu igualmente uma declaração exigindo a resolução do problema logo que possível e em todo o caso antes de qualquer novo alargamento.
Foi o que os Quinze tentaram fazer na cimeira de Nice ao fim de cinco dias de acesas discussões e um braço-de-ferro entre grandes e pequenos países, de um lado, e entre Paris e Berlim, do outro: a recusa francesa de reconhecer o novo peso da Alemanha reunificada nas decisões e a sua exigência de manter a paridade histórica dos votos entre os dois países, resultaram num sistema de reforço dos votos ponderados dos grandes países particularmente complicado e de difícil aplicação. Com a agravante que tornaria o processo de decisão ainda mais difícil do que antes. Ainda a tinta do novo Tratado de Nice não estava seca e já todos os participantes consideravam o acordo largamente insatisfatório.
Desta cimeira saiu assim nova declaração pedindo "um debate mais amplo e mais profundo sobre o futuro da UE". Debate que a presidência belga da UE tratou de acelerar fazendo aprovar, um ano depois, a chamada "declaração de Laeken" que lançou as questões a resolver num novo tratado: uma União mais democrática, transparente e eficaz, a aproximação dos cidadãos, o aumento da legitimidade democrática e da transparência das instituições e decisões e a simplificação dos tratados. Esta declaração interrogava-se sobre a oportunidade de este processo "conduzir, a prazo, à adopção de um texto constitucional".
Este trabalho foi encomendado a uma convenção reunindo representantes dos governos, parlamentos nacionais, Parlamento Europeu e Comissão Europeia que, sob a presidência de Valéry Giscard d"Estaing, produziu uma proposta de Constituição em Junho de 2003.
Este texto constituiu a base dos trabalhos da conferência intergovernamental (CIG), o método obrigatório de revisão dos tratados, que assumiu o essencial das suas propostas produzindo uma Constituição consolidada em Junho de 2004. Isto, não sem antes ter passado por uma tentativa falhada de acordo, em Dezembro de 2003, devido à oposição da Espanha e Polónia ao novo método de decisão que substitui os votos ponderados por uma nova "dupla maioria" de Estados e população e lhes retirava o peso desproporcionado que tinham obtido em Nice. O problema resolveu-se com a subida dos dois limiares para o cálculo da dupla maioria: 55 por cento dos Estados (contra 50 por cento inicialmente) representando 65 por cento da população (em vez de 60 por cento).
Os referendos francês e holandês de Maio e Junho de 2005 inviabilizaram a aplicação da Constituição, que, como qualquer tratado, precisa da ratificação de todos os Estados. Sem Constituição, o sistema de votações de Nice (em vigor desde 2004) permaneceria a regra, uma situação recusada por quase todos os países.
O impasse aberto em 2005 foi ultrapassado dois anos depois quando o novo Presidente francês, Nicolas Sarkozy, decidiu impulsionar a recuperação, num novo tratado, do essencial da Constituição, embora sem a estrutura, a linguagem e os símbolos, mas mantendo a totalidade da arquitectura institucional.
É este tratado que vai ser hoje submetido à aprovação dos Vinte e Sete.
Vale a pena lembrar os últimos dez anos de discussões institucionais para se perceber o contexto. Por isso, não resisto a pôr aqui o texto que escrevi no Público de hoje sobre o que esteve em causa desde 1997 (desculpem a repetição...)
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De Amesterdão a Lisboa, passando por Nice, a difícil procura do equilíbrio entre o peso relativo dos Estados
De Amesterdão a Lisboa: as raízes do novo Tratado da União Europeia (UE) foram lançadas há dez anos, em Amesterdão, no quadro de uma tentativa falhada dos líderes dos então 15 Estados-membros de reformar em profundidade as instituições comunitárias.
Em 1997, os grandes países procuravam reforçar o seu peso relativo no conselho de ministros europeu (o principal órgão de decisão, embora cada vez mais em conjunto com o Parlamento Europeu), de modo a compensar a erosão de que se sentiam vítimas em resultado dos alargamentos sucessivos da UE.
Para isso, defendiam, era necessário encontrar um novo equilíbrio entre os princípios da igualdade entre os Estados e da representação democrática.
Na fundação da UE, a questão tinha sido resolvida com a invenção de um sistema de votos ponderados atribuídos a cada país consoante a sua dimensão. Um sistema cuja principal característica era garantir a sobrerepresentação dos mais pequenos.
A perspectiva do grande alargamento da UE ao Leste pôs a nu os limites deste mecanismo: na Europa a seis, os grandes países (França, Alemanha e Itália) eram metade dos Estados-membros; com 27, os seis grandes (estes três mais o Reino Unido, Espanha e Polónia), que reúnem 70 por cento da população da UE, passariam a ser pouco mais de um quinto do total dos Estados.
Ao mesmo tempo, a população representada numa decisão por maioria qualificada no conselho de ministros passou de 68 por cento em 1957, para 58 por cento em 1995. Sem uma reforma, voltaria a descer para 50 por cento na UE a 27.
Ao pôr em questão a legitimidade democrática das decisões europeias, esta situação ressuscitou o velho debate sobre a forma de conciliar a igualdade entre os Estados e a representação democrática. Que provocou, inevitavelmente, um confronto entre os grandes e os pequenos países. Confronto que ficou largamente por resolver na cimeira de Junho de 1997, em Amesterdão, que acordou o Tratado do mesmo nome.
A reivindicação dos grandes países de obter um reforço dos seus votos ponderados no conselho de ministros saiu reforçada com a decisão então tomada de reduzir a Comissão Europeia a um nacional por Estado-membro (acabando com o segundo comissário a que os grandes países tinham direito). Mas, perante o impasse, de Amesterdão saiu igualmente uma declaração exigindo a resolução do problema logo que possível e em todo o caso antes de qualquer novo alargamento.
Foi o que os Quinze tentaram fazer na cimeira de Nice ao fim de cinco dias de acesas discussões e um braço-de-ferro entre grandes e pequenos países, de um lado, e entre Paris e Berlim, do outro: a recusa francesa de reconhecer o novo peso da Alemanha reunificada nas decisões e a sua exigência de manter a paridade histórica dos votos entre os dois países, resultaram num sistema de reforço dos votos ponderados dos grandes países particularmente complicado e de difícil aplicação. Com a agravante que tornaria o processo de decisão ainda mais difícil do que antes. Ainda a tinta do novo Tratado de Nice não estava seca e já todos os participantes consideravam o acordo largamente insatisfatório.
Desta cimeira saiu assim nova declaração pedindo "um debate mais amplo e mais profundo sobre o futuro da UE". Debate que a presidência belga da UE tratou de acelerar fazendo aprovar, um ano depois, a chamada "declaração de Laeken" que lançou as questões a resolver num novo tratado: uma União mais democrática, transparente e eficaz, a aproximação dos cidadãos, o aumento da legitimidade democrática e da transparência das instituições e decisões e a simplificação dos tratados. Esta declaração interrogava-se sobre a oportunidade de este processo "conduzir, a prazo, à adopção de um texto constitucional".
Este trabalho foi encomendado a uma convenção reunindo representantes dos governos, parlamentos nacionais, Parlamento Europeu e Comissão Europeia que, sob a presidência de Valéry Giscard d"Estaing, produziu uma proposta de Constituição em Junho de 2003.
Este texto constituiu a base dos trabalhos da conferência intergovernamental (CIG), o método obrigatório de revisão dos tratados, que assumiu o essencial das suas propostas produzindo uma Constituição consolidada em Junho de 2004. Isto, não sem antes ter passado por uma tentativa falhada de acordo, em Dezembro de 2003, devido à oposição da Espanha e Polónia ao novo método de decisão que substitui os votos ponderados por uma nova "dupla maioria" de Estados e população e lhes retirava o peso desproporcionado que tinham obtido em Nice. O problema resolveu-se com a subida dos dois limiares para o cálculo da dupla maioria: 55 por cento dos Estados (contra 50 por cento inicialmente) representando 65 por cento da população (em vez de 60 por cento).
Os referendos francês e holandês de Maio e Junho de 2005 inviabilizaram a aplicação da Constituição, que, como qualquer tratado, precisa da ratificação de todos os Estados. Sem Constituição, o sistema de votações de Nice (em vigor desde 2004) permaneceria a regra, uma situação recusada por quase todos os países.
O impasse aberto em 2005 foi ultrapassado dois anos depois quando o novo Presidente francês, Nicolas Sarkozy, decidiu impulsionar a recuperação, num novo tratado, do essencial da Constituição, embora sem a estrutura, a linguagem e os símbolos, mas mantendo a totalidade da arquitectura institucional.
É este tratado que vai ser hoje submetido à aprovação dos Vinte e Sete.
terça-feira, 9 de outubro de 2007
Tratado incompreensível?
Diz “o raio” num dos seus comentários ao meu post anterior que o novo Tratado é incompreensível e que parece sê-lo "de propósito". É verdade, é muito difícil perceber este Tratado, sobretudo quando não se tem à frente dos olhos todos os Tratados anteriores que o novo texto vai modificar. E mesmo tendo os outros Tratados, não é tarefa fácil perceber o que é que está em causa.
O que “o raio” se esqueceu foi que o Tratado é o que é porque o povo soberano assim o decidiu.
Os eleitores franceses e holandeses, que foram chamados a referendar a Constituição em 2005, tinham um texto que consolidava, codificava e clarificava todos os Tratados anteriores. Tinha defeitos ? Claro que sim, mas tinha também uma série de aspectos positivos. E tinha, ainda, o mérito de poder ser lida de fio a pavio e minimamente compreendida.
Mas o povo soberano votou, e rejeitou a Constituição. Hoje há estudos mais do que suficientes que mostram que o voto negativo dos dois países não foi contra a Constituição, mas contra a conjuntura do momento. Os holandeses, contra a imigração, o alargamento da UE ao Leste, e, em grande parte, porque o seu governo tinha passado os anos anteriores a queixar-se de que o país paga demais para alimentar o orçamento comunitário. Questão que não tinha nada a ver com a Constituição. Mas, como costuma dizer Durão Barroso, é difícil os governos dizerem mal da União Europeia todos os dias da semana e depois pedirem ao domingo para os seus cidadãos votarem a favor da Europa.
Em França, a coisa foi mais complicada. O voto negativo traduziu a revolta da opinião pública contra o governo, o presidente, o alargamento da UE ao Leste, a globalização e a alegada “deriva liberal” da Europa. Foi, igualmente, uma espécie de vingança do dia negro de 21 de Abril de 2002, quando a esquerda foi cilindrada com a passagem de Le Pen à segunda volta das eleições presidenciais e não teve alternativa senão votar em Chirac para lhe barrar o caminho.
A única parte da Constituição que, segundo os analistas, os franceses rejeitaram foi a chamada Parte III – por traduzir a tal "deriva liberal" da Europa. Só que esta era
precisamente a única parte que não podia ser rejeitada porque não era mais do que o conteúdo codificado e clarificado dos Tratados em vigor, de modo a tornar o conjunto compreensível.
Os franceses votaram contra, ainda, porque os opositores garantiram que a morte da Constituição permitiria construir uma Europa alternativa, social, com salários e impostos nivelados entre todos os países e possivelmente com “concorrência falseada” (o que mais emocionou os franceses parece ter sido a promoção da “concorrência livre e não falseada” que é afirmada nos princípios da UE). E outras inépcias do género. Mas foi o que se viu.
Dois anos depois, os franceses elegeram para presidente da república, Nicolas Sarkozy, liberal de convicção, que anunciou alto e bom som durante a campanha eleitoral a sua intenção de propôr aos parceiros um "Tratado simplificado” para substituir a Constituição nos moldes do texto que vai ser aprovado na próxima semana na cimeira de Lisboa. Deixou igualmente bem claro na campanha que não submeteria a ratificação desse novo Tratado a referendo, mas ao parlamento. A sua adversária, a socialista Segolène Royal, prometia por seu lado um Tratado social e um referendo. Sarkozy foi eleito com 53 por cento dos votos.... Votação que lhe conferiu a legitimidade necessária para impulsionar o seu Tratado simplificado.
O resultado é um texto que retoma todos os arranjos institucionais e as maiorias qualificadas que tinham entrado na Constituição, mas que abandona o estilo e os símbolos “constitucionais”, a par da Carta dos Direitos Fundamentais (que salta para uma declaração anexa, embora com valor juridicamente vinculativo).
Ainda haverá alguém que defenda que a Europa e os seus cidadãos ficaram a ganhar?
O que “o raio” se esqueceu foi que o Tratado é o que é porque o povo soberano assim o decidiu.
Os eleitores franceses e holandeses, que foram chamados a referendar a Constituição em 2005, tinham um texto que consolidava, codificava e clarificava todos os Tratados anteriores. Tinha defeitos ? Claro que sim, mas tinha também uma série de aspectos positivos. E tinha, ainda, o mérito de poder ser lida de fio a pavio e minimamente compreendida.
Mas o povo soberano votou, e rejeitou a Constituição. Hoje há estudos mais do que suficientes que mostram que o voto negativo dos dois países não foi contra a Constituição, mas contra a conjuntura do momento. Os holandeses, contra a imigração, o alargamento da UE ao Leste, e, em grande parte, porque o seu governo tinha passado os anos anteriores a queixar-se de que o país paga demais para alimentar o orçamento comunitário. Questão que não tinha nada a ver com a Constituição. Mas, como costuma dizer Durão Barroso, é difícil os governos dizerem mal da União Europeia todos os dias da semana e depois pedirem ao domingo para os seus cidadãos votarem a favor da Europa.
Em França, a coisa foi mais complicada. O voto negativo traduziu a revolta da opinião pública contra o governo, o presidente, o alargamento da UE ao Leste, a globalização e a alegada “deriva liberal” da Europa. Foi, igualmente, uma espécie de vingança do dia negro de 21 de Abril de 2002, quando a esquerda foi cilindrada com a passagem de Le Pen à segunda volta das eleições presidenciais e não teve alternativa senão votar em Chirac para lhe barrar o caminho.
A única parte da Constituição que, segundo os analistas, os franceses rejeitaram foi a chamada Parte III – por traduzir a tal "deriva liberal" da Europa. Só que esta era
precisamente a única parte que não podia ser rejeitada porque não era mais do que o conteúdo codificado e clarificado dos Tratados em vigor, de modo a tornar o conjunto compreensível.
Os franceses votaram contra, ainda, porque os opositores garantiram que a morte da Constituição permitiria construir uma Europa alternativa, social, com salários e impostos nivelados entre todos os países e possivelmente com “concorrência falseada” (o que mais emocionou os franceses parece ter sido a promoção da “concorrência livre e não falseada” que é afirmada nos princípios da UE). E outras inépcias do género. Mas foi o que se viu.
Dois anos depois, os franceses elegeram para presidente da república, Nicolas Sarkozy, liberal de convicção, que anunciou alto e bom som durante a campanha eleitoral a sua intenção de propôr aos parceiros um "Tratado simplificado” para substituir a Constituição nos moldes do texto que vai ser aprovado na próxima semana na cimeira de Lisboa. Deixou igualmente bem claro na campanha que não submeteria a ratificação desse novo Tratado a referendo, mas ao parlamento. A sua adversária, a socialista Segolène Royal, prometia por seu lado um Tratado social e um referendo. Sarkozy foi eleito com 53 por cento dos votos.... Votação que lhe conferiu a legitimidade necessária para impulsionar o seu Tratado simplificado.
O resultado é um texto que retoma todos os arranjos institucionais e as maiorias qualificadas que tinham entrado na Constituição, mas que abandona o estilo e os símbolos “constitucionais”, a par da Carta dos Direitos Fundamentais (que salta para uma declaração anexa, embora com valor juridicamente vinculativo).
Ainda haverá alguém que defenda que a Europa e os seus cidadãos ficaram a ganhar?
domingo, 7 de outubro de 2007
Eis o novo Tratado
O novo Tratado está pronto para aprovação pelos chefes de Estado ou de governo da UE na cimeira de 18 e 19 de Outubro, em Lisboa. São quatro documentos: Preâmbulo, texto do Tratado, Protocolos e Declarações anexas.
Oficialmente, só estão duas questões em aberto para resolver em Lisboa, ambas levantadas pela Polónia: o aumento do número dos advogados-gerais do Tribunal de Justiça da UE de oito para dez de modo a que a Polónia possa ter direito a um permanente, e a inscrição no texto do Tratado do chamado "compromisso de Ioanina". Este é o mecanismo que permite a um grupo de Estados com um número de votos próximo de uma "minoria de bloqueio" (de uma maioria qualificada no conselho de ministros da UE), pedir a suspensão e o adiamento da deliberação em causa para permitir a continuação das negociações.
Se, no primeiro caso, não é impossível que a reivindicação polaca encontre uma resposta positiva, no segundo a coisa é mais complicada: a maioria dos países não quer ir além da inscrição do compromisso de Ioanina numa declaração anexa ao Tratado (como é actualmente o caso), o que lhe confere o estatuto de compromisso político. Em contrapartida, a sua inclusão no texto do Tratado garante-lhe a força do direito primário europeu. O problema é que Jaroslaw Kacyznski, o primeiro ministro polaco, vai a votos dois dias depois da cimeira de Lisboa...
Um terceiro problema tem ainda boas probabilidades de se impôr na discussão dos lideres: a composição do Parlamento Europeu (PE). Uma proposta de repartição dos 750 eurodeputados entre os Vinte e Sete vai ser aprovada esta semana pelo PE. Os governos da Polónia, Itália e Irlanda estão no entanto longe de satisfeitos com a sua sorte e parecem dispostos a levantar a questão na cimeira. Voltarei brevemente a esta questão.
Oficialmente, só estão duas questões em aberto para resolver em Lisboa, ambas levantadas pela Polónia: o aumento do número dos advogados-gerais do Tribunal de Justiça da UE de oito para dez de modo a que a Polónia possa ter direito a um permanente, e a inscrição no texto do Tratado do chamado "compromisso de Ioanina". Este é o mecanismo que permite a um grupo de Estados com um número de votos próximo de uma "minoria de bloqueio" (de uma maioria qualificada no conselho de ministros da UE), pedir a suspensão e o adiamento da deliberação em causa para permitir a continuação das negociações.
Se, no primeiro caso, não é impossível que a reivindicação polaca encontre uma resposta positiva, no segundo a coisa é mais complicada: a maioria dos países não quer ir além da inscrição do compromisso de Ioanina numa declaração anexa ao Tratado (como é actualmente o caso), o que lhe confere o estatuto de compromisso político. Em contrapartida, a sua inclusão no texto do Tratado garante-lhe a força do direito primário europeu. O problema é que Jaroslaw Kacyznski, o primeiro ministro polaco, vai a votos dois dias depois da cimeira de Lisboa...
Um terceiro problema tem ainda boas probabilidades de se impôr na discussão dos lideres: a composição do Parlamento Europeu (PE). Uma proposta de repartição dos 750 eurodeputados entre os Vinte e Sete vai ser aprovada esta semana pelo PE. Os governos da Polónia, Itália e Irlanda estão no entanto longe de satisfeitos com a sua sorte e parecem dispostos a levantar a questão na cimeira. Voltarei brevemente a esta questão.
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