Herman Van Rompuy: filósofo, poeta e presidente do Conselho Europeu *
Desconhecido e discreto, a sua escolha para presidente do Conselho Europeu foi motivo de troça de muitos jornais. Três semanas depois de ter entrado em funções, o ex-primeiro ministro bega já desmentiu pelos actos muitas das críticas. Durão Barroso começa a ficar preocupado com eventuais incursões na sua esfera de competências, e Rodriguez Zapatero já esbarrou contra a sua “determinação serena” de usar plenamente os seus poderes...
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Quem foi que disse que Herman Van Rompuy seria um presidente do Conselho Europeu inócuo, apagado, inofensivo?
Esta foi a leitura trocista de muitos observadores e analistas europeus ou americanos, porventura pouco familiarizados com o funcionamento da União Europeia (UE), desiludidos pelo facto de os lideres dos Vinte e Sete terem escolhido para seu primeiro presidente permanente um político de aparência tão pouco promissora e tão distante da figura carismática, mediática e de envergadura internacional que defendiam para o cargo.
“Desenganem-se!”, avisa quem o conhece, frisando que a aparência de professor tímido, afável e cordato de Van Rompuy esconde uma vontade de ferro e uma personalidade bem mais complexa – contraditória, dirão alguns – do que parece.
Uma coisa é certa: as três semanas passadas desde que assumiu funções, a 4 de Janeiro, foram suficientes para desfazer a imagem de um presidente incapaz de levantar ondas: Van Rompuy, flamengo de 62 anos, sabe o que quer, tem a habilidade táctica para levar a água ao seu moinho e, mais importante ainda, tem a paciência necessária para esperar pela sua oportunidade. “Pode precisar de tempo, mas quando toma uma decisão, corta a direito, sem olhar para o lado”, resume um responsável belga que pediu o anonimato, como a generalidade das pessoas ouvidas pelo PÚBLICO.
Por alguma razão, o homem que foi primeiro ministro da Bélgica durante apenas onze meses impressionou fortemente os seus pares à mesa do Conselho Europeu, o nome oficial das cimeiras de chefes de Estado ou de Governo da UE. E não apenas pela habilidade discreta com que conseguiu pacificar a crise institucional entre flamengos e francófonos, que esteve à beira de provocar a implosão do país.
Os cínicos dirão que os lideres escolheram Van Rompuy por considerarem que, com os seus bons modos e discrição não faria sombra aos seus egos particularmente desenvolvidos. Ou, em alternativa, que beneficiou do facto de não ter tido tempo para ser conhecido – e, consequentemente, de fazer inimigos entre os seus pares da UE.
O que é certo é que o ex-primeiro ministro belga assumiu a fundo a função que diz que não procurou, deixando clara a determinação de aplicar plenamente “o espírito e a letra” do Tratado de Lisboa, que criou o seu posto. O que significa que concentrará esforços ao longo dos próximos dois anos e meio a animar, coordenar e impulsionar os trabalhos do Conselho Europeu de forma a gerar os necessários consensos entre os Vinte e Sete, assegurar a continuidade e coerência da sua acção, e falar em seu nome com o resto do Mundo.
Ninguém tem dúvidas de que Van Rompuy não tem a menor intenção de se assumir como o “presidente da Europa”, à semelhança de Barack Obama, como defendiam os desiludidos pela sua escolha. Não por timidez, falta de iniciativa ou de coragem, mas antes de mais porque não é isso que estipula o novo Tratado. E, mais importante ainda, porque sabe que um presidente desse tipo apenas seria possível se a UE fosse um super-estado em vez de uma União de Vinte e Sete países soberanos.
Van Rompuy, político ponderado de quem nunca se ouviu uma “gaffe”, clarificou mais um pouco a sua concepção da missão: no seu trabalho de procura de consensos, velará para que “cada país saia vitorioso da negociação” e para que “todas as deliberações produzam resultados para todos”. O que pressupõe uma grande capacidade de escuta e de respeito pelas posições em confronto, uma das qualidades que lhe é mais frequentemente atribuída.
Mais ainda: as suas convicções pessoais – incluindo a oposição à adesão da Turquia à UE, que reiterou enquanto primeiro ministro – ficarão em surdina durante dois anos e meio: as suas opiniões deixaram de contar, e os seus pontos de vista serão os que forem assumidos pelos Vinte e Sete, garantiu. “Qualquer presidente do Conselho Europeu, por muito talentoso que fosse, que agisse de forma individual e falasse em nome da Europa (...) sem ter o consentimento dos chefes dos governos [da UE], passaria rapidamente a falar não em nome da Europa, mas simplesmente em seu próprio nome”, afirmou recentemente numa conferência na Alemanha. O que, prosseguiu, “prejudicaria a instituição e a Europa no seu todo”.
“Van Rompuy começa um pouco como Jacques Delors quando diz que são os chefes de Estado ou de Governo que vão decidir e que ele só lá está para fazer compromissos. Na aparência, põe-se numa posição de recuo mediático, mas a verdade é que já tomou várias decisões marcantes”, analisa Sylvie Goulard, eurodeputada e presidente do Movimento Europeu francês.
A “determinação serena” – o seu lema – do novo presidente ficou clara quando, antes mesmo de tomar posse, enfrentou calmamente a revolta de várias capitais por ter corrido com os ministros dos negócios estrangeiros das cimeiras de lideres. Os protestos de muitos ministros não serviram de nada: a decisão limita-se a respeitar o “espírito e a letra” do Tratado de Lisboa, que limita o Conselho Europeu aos chefes de Estado ou de governo.
O efeito foi imediato: a mesa gigantesca de 54 cadeiras (duas para cada país) foi drasticamente reduzida e os ecrãs de televisão instalados em frente de cada líder para lhes permitir ver a cara dos intervenientes, desapareceram, proporcionado um ambiente de intimidade e cumplicidade. Tudo indica que o objectivo de de Van Rompuy de levar o Conselho Europeu a regressar às suas origens enquanto local de discussão aberta, e à porta fechada, entre os lideres, foi plenamente conseguido.
Mais importante ainda, sem o apoio e os conselhos dos chefes da diplomacia, os lideres serão a partir de agora obrigados a conhecer a fundo os temas em debate – o que muitos não se dão ao trabalho de fazer – sob pena de não conseguirem ir a jogo. É suposto esta inovação facilitar a emergência de consensos, muitas vezes travados pelo tradicional atavismo dos diplomatas, mas o que é desde já certo é que reforçará o papel de Van Rompuy entre os Vinte e Sete.
No próprio dia em que tomou posse, o novo presidente permanente convocou uma cimeira extraordinária, e informal, de lideres para 11 de Fevereiro, e fixou a agenda: o arranque da discussão sobre a estratégia económica que vai suceder à chamada “agenda de Lisboa”, e que deverá desembocar em decisões concretas na cimeira regular de Junho. A nova estratégia, defendeu, deverá permitir duplicar o crescimento económico potencial da UE para 2 por cento anuais, condição essencial para “preservar o modo de vida e o modelo social europeu”.
Beneficiando do factor tempo – “o maior bem” de que dispõe – Van Rompuy, iniciou antes mesmo de entrar em funções um périplo por todos os países da UE para sensibilizar cada um dos lideres para os seus objectivos, e sondar as diferentes aspirações e sensibilidades.
Ao convocar a cimeira, fixar a agenda e definir o objectivo de longo prazo, Van Rompuy mostrou claramente, mas sem alarido nem conflito, que quer marcar o seu terreno. Não hesitando, aliás, em entrar ligeiramente nas prerrogativas da Comissão Europeia, a instituição que tem a responsabilidade de fazer as propostas sobre as quais o presidente do Conselho terá de gerar os consensos entre os governos.
“A natureza tem horror do vazio e se Durão Barroso não ocupar o espaço que lhe compete em termos de propostas, e se o Conselho Europeu tiver um presidente com ideias mais precisas, vai marcar pontos”, avisa Sylvie Goulard.
O presidente da Comissão, que começou por suspirar de alívio com a escolha do belga por acreditar que o seu estilo educado e respeitador afastaria o risco anunciado de uma guerra de competências entre as duas instituições, percebeu rapidamente que terá de vigiar atentamente o seu espaço. Barroso deu mesmo instruções aos seus colaboradores para lerem e relerem o novo Tratado, de modo a terem sempre presente a delimitação exacta das competências do novo presidente e evitar novas incursões na esfera de acção da Comissão.
O verdadeiro choque – de novo sem estardalhaço – aconteceu com a Espanha, que iniciou a 1 de Janeiro a presidência semestral rotativa da UE. Van Rompuy convocou uma cimeira que não estava nos planos de Madrid? Pois José Luis Rodriguez Zapatero, primeiro ministro espanhol, reagiu com uma contra proposta defendendo que a nova estratégia sucessora da Agenda de Lisboa deverá incluir sanções para os países que não cumpram os objectivos económicos definidos em comum. A ideia não é nova e parte do diagnóstico – correcto – de que a agenda de Lisboa se limita a um rol de boas intenções a aplicar ao sabor da vontade de cada Estado, em áreas em que a UE não tem competências nem meios de impor o seu cumprimento.
Van Rompuy constatou o óbvio ao considerar a ideia de Zapatero “ambiciosa” – o que significa, de facto, “irrealista”– sabendo que não tem quaisquer possibilidades de alguma vez ser aceite. Mas foi a Alemanha que se encarregou de demolir a proposta, obrigando Madrid a recuar.
Esta sobreposição de iniciativas resulta daquela que é considerada a maior contradição do Tratado de Lisboa, que mantém as presidências semestrais assumidas de forma rotativa entre todos os países previstas desde as origens da integração europeia, embora decapitadas: o papel tradicionalmente atribuído ao chefe do governo que assegura a presidência passa a ser assumido pelo presidente permanente, eleito por um ou dois mandatos de dois anos e meio cada.
Como era esperado, Zapatero, o primeiro presidente sem poderes, não se conforma com o anonimato total a que ficou relegado, nem com a perca da possibilidade de brilhar durante seis meses ao lado dos grandes lideres mundiais – de Barack Obama a Hu Jintao – que gostaria de poder capitalizar no plano interno. Tanto mais que os restantes membros do seu governo permanecerão na ribalta europeia durante seis meses, pelo facto de presidirem às reuniões do Conselho de Ministros da UE (finanças, agricultura, transportes, e por aí fora). A excepção será o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que, por via do novo Tratado, terá o seu papel fortemente diminuído.
“Há um combate político para ocupar o primeiro plano” entre um presidente permanente “que não dispõe de um secretariado próprio nem de poder executivo” e o chefe de um governo de um país “que não quer ceder o seu poder”, analisa Hugo Brady, do Centre for European Reform (CER) de Londres.
Para Van Rompuy o conflito não é inevitável: “a situação é complexa”, reconhece, mas “a condição essencial para o sucesso – “não pessoal mas o sucesso da União” – é o desenvolvimento de “boas relações pessoais” entre os lideres das principais instituições europeias. “Não é o momento para rivalidades entre instituições e os seus lideres” defende, porque “os europeus querem resultados, não uma guerra de instituições”.
Filósofo por convicção – e formação, complementada de forma pragmática com um doutoramento em economia – poeta nas horas livres especializado na concepção de haikus (um tipo de poesia japonesa de 17 sílabas), Van Rompuy deu sempre a ideia de não ser movido pela busca do seu prestígio pessoal.
Apesar de ter feito toda a sua carreira nos diferente escalões do partido democrata-cristão flamengo, o belga cultiva uma certa distância da política, detesta o lado mundano do poder, foge do “jet set”, da imprensa e dos eventos mediáticos. Traços que mantém no novo cargo.
A leitura, a reflexão e a escrita são os únicos hobbies que lhe são atribuídos, a par do seu retiro anual de vários dias na abadia beneditina de Affligem para carregar baterias. Apesar desta imagem de asceta, há quem garanta que é um “bon vivant”. Os seus gostos e modo de vida são modestos, como provam as imagens das suas últimas férias de Verão passadas a percorrer a Austrália com a família – quatro filhos e dois netos – em “camping car”.
A postura pública e privada de Van Rompuy é certamente o resultado da sua profunda fé católica, que assume sem rodeios e integra nas suas reflexões frequentemente expressas em debates promovidos pela Igreja, sobre o papel da política e da economia ao serviço da felicidade humana em sentido lato.
Apesar disso, há quem negue o seu lado místico e invoque o seu célebre humor suave mas cáustico, para o descrever como um político cínico e implacável com os adversários. Os seus defensores alegam que é sobretudo um homem que só leva realmente a sério as questões de vida ou de morte, e que encara tudo o resto como problemas de valor secundário que acabarão, mais tarde ou mais cedo, mal ou bem, por se resolver.
Ministro várias vezes, Van Rompuy resistiu enquanto pode ao convite do rei dos belgas, Albert II, em Dezembro de 2008, para suceder a Yves Leterme – companheiro do mesmo partido caído em desgraça no auge da maior crise institucional do país – por recusar o estilo de vida inerente ao cargo. A imprensa belga sublinha no entanto o seu papel decisivo na demissão forçada de Leterme, por ter revelado, enquanto presidente do Parlamento, a existência de uma carta da magistratura belga acusando o governo de pressões no processo judicial sobre o desmantelamento do grupo financeiro Fortis.
Van Rompuy garante igualmente que não procurou o cargo de primeiro presidente permanente do Conselho Europeu e quem o conhece, acredita.
No Justus Lipsius, o edifício do Conselho da UE, os dias de trabalho do presidente continuam a começar cedo e a acabar tarde. O seu ritmo de trabalho é intenso, e a obsessão pela absorção dos “dossiers” e compreensão dos detalhes, a par da a preocupação de analisar cada assunto sob os mais diferentes ângulos e de ouvir os diferentes argumentos em confronto, mantém-se viva. Para o ajudar, conta com 22 colaboradores de várias nacionalidades, blindados pelos dois únicos belgas – flamengos – que levou consigo.
O primeiro, Dirk De Backer, gere há mais de vinte anos as suas relações com a imprensa. Curiosamente, alguns jornalistas belgas comparam-no com Alistair Campbell, o ex-conselheiro de Tony Blair que é considerado o “rei do spin”, um termo que traduz a tentação de influenciar a imprensa.
O segundo, que assumiu a chefia do seu gabinete, é Frans van Daele, o mais prestigiado dos embaixadores belgas, cujo vasto leque de qualidades é invocado de forma quase reverente por todos os que o cruzaram, tanto na Europa como nos Estados Unidos.
A acreditar em Tobias van Assche, professor da Universidade de Antuérpia e especialista do método americano de análise dos diferentes estilos de liderança (“Leadership Trait Analysis”), Van Rompuy tem o perfil certo para o lugar. A sua principal missão será conseguir acordos entre Vinte e Sete países com necessidades e reivindicações diferentes, o que fará “de forma inclusiva e sem deixar ninguém com o sentimento de ficar de fora ou de ser forçado a assinar compromissos com que não concorda”, considera.
Além disso, Van Rompuy “tem uma necessidade muito reduzida de poder”, não é motivado por uma busca de “prestígio pessoal”, nem precisa de “assumir os louros” dos resultados que obtiver. Desta forma, “não forçará um acordo quando não houver consenso”, prossegue o mesmo académico. Acima de tudo, “ficará satisfeito se o Conselho Europeu chegar a acordos”, e é por isso que “criará o sentimento de que os países trabalham com ele, não para ele”.
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* Artigo publicado na revista Pública de 24 de Janeiro de 2010