
Na altura era um país ainda largamente desconhecido, que começava muito lentamente a abrir-se ao exterior. Abertura imposta pela necessidade de dólares num país que esteve durante várias décadas isolado do resto do Mundo (excepção feita da China) em nome do designado “burmese way for socialism”, um regime proto-maoista que brutalizou e empobreceu a população.
Aceites com muita relutância, os turistas só podiam obter vistos rigorosamente limitados a sete dias. Também só podiam circular em certas zonas, deslocar-se nos meios de transporte públicos e dormir e comer nos estabelecimentos do estado. Todos os transportes, hotéis e restaurantes utilizados tinham de ser registados, com carimbo oficial, num formulário entregue à chegada ao aeroporto de Rangoon para ser devolvido à saída. Todos os câmbios de dinheiro também, a começar pelos 100 dólares que eram obrigatoriamente trocados à entrada à taxa oficial de 1 dólar para 1 kyat (leia-se tchat). No mercado negro, a relação era de 1 dólar para 32 kyats.
Rangum, em 1988, era uma cidade sem trânsito, sem poluição atmosférica, sem lojas – tudo se vendia nas ruas em banquinhas improvisadas – sem néons publicitários da Coca-Cola nem American Express. A cidada estava praticamente como os ingleses a tinham deixado quarenta anos anos, ou seja, quase em ruínas. Dizem-me que desde então mudou radicalmente e que tem hotéis de luxo, néons e monumentos restaurados com o apoio do American Express. A população continua no entanto a sobreviver no limiar da pobreza.

Fomos defrontados com inúmeras barragens de polícia e mesmo do exército: de todas as vezes, a conversa, para nós incompreensível, dos nossos acompanhantes birmaneses – e imagino, alguns kyats – poupavam uma revista ao carro e a descoberta dos "clandestinos". Estranhamente, estes encontros passavam-se sem stress nem pânico como se a própria polícia fosse indiferente a tudo.
Ao longo da viagem, os formulários oficiais, que, além dos 100 dólares trocados à entrada, continuavam imaculados sem nenhum hotel nem restaurante inscrito, foram sendo objecto de um tratamento de choque. Por “acidente”, cairam regularmente em poças de lama, foram espezinhados, manchados de tinta e até chegaram a passar por baixo das rodas do “pick up”. À saída, de novo no aeroporto de Rangum, os quatro formulários tinham-se transformado em bocados de papel disformes, rasgados, esburacados, borrados e ilegíveis. Curiosamente, ninguém estranhou nem perguntou porquê. Acho mesmo que o polícia que me revistou nem sequer olhou para ele.
É certo que, nesse dia, a polícia e o exército estavam mais preocupados em despachar todos os turistas para fora do país do que em verificar o cumprimento das regras. É que, por coincidência, a nossa saída da Birmânia ocorreu a 8 de Agosto. O dia em que começou a repressão brutal dos protestos nas ruas e que provocou, nos dias seguintes, a morte de mais de 3 mil pessoas.
Por todo o país, os estudantes, que tinham iniciado os protestos algumas semanas antes, e os monges que os apoiavam, tinham deixado bem claro que o dia 8/8/88, altamente simbólico, seria decisivo no movimento de contestação. Também sabiam que era o dia mais perigoso de todo o movimento com todos os riscos de reacção do exército, até então relativamente calmo.

Só depois de aterrar em Bangkok, no dia 8 à noite, é que ficámos a saber que a polícia e o exército tinham carregado nessa mesma tarde sobre os manifestantes em Rangum matando mais de 100 pessoas. Nos dias que se seguiram, o número de vítimas ultrapassou os 3 mil.

Desde então, a brutalidade do regime manteve-se inalterada, perante a relativa indiferença do resto do Mundo. Desta vez, a visibilidade da repressão não permite ignorar o que se passa. Não sei qual é a solução para evitar um novo banho de sangue, mas provavelmente a China, o único país que mantém um simulacro de relações com a junta birmanesa, será igualmente o único com algum meio de pressão sobre o regime. É hora de o Mundo começar a fazer pressão sobre a China.