Não sei se percebi.
Durante quase dois anos os governos da zona euro encheram-nos a cabeça (pelo menos a nós, jornalistas) com propostas, negociações, braços de ferro e compromissos sobre novas regras que, agora sim, é que iriam impor uma verdadeira disciplina orçamental aos membros da moeda única.
Um dos grandes eixos das novas medidas - que acabaram por ficar conhecidas por "Six Pack" (um diminutivo de "pacote de seis propostas legislativas") - assentou no reforço dos mecanismos de sanções contra os países que não respeitem as trajectórias de consolidação orçamental negociadas com a Comissão Europeia e aprovadas pelo conselho de ministros das finanças da zona euro.
A partir de agora, garantiram-nos, se um país não cumprir as metas de redução do défice orçamental que acordou com os parceiros, fica sujeito a sanções (multas até 0,5% do PIB) numa fase muito mais precoce do processo. Mais importante ainda, garantiram-nos ainda, estas sanções passarão a ser decididas de forma muito mais automática a partir de propostas da Comissão Europeia, para evitar o tipo de negociação política que levou à implosão do pacto de estabilidade e crescimento em 2003 para proteger a França e a Alemanha de eventuais penalizações. Ok.
As novas regras entraram em vigor em Dezembro.
Três meses depois, o novo governo espanhol decidiu mandar unilateralmente às urtigas a meta fixada para o défice deste ano - 4,4% do PIB - adoptando um objectivo menos exigente de 5,8% do PIB. Isto porque segundo o primeiro ministro Mariano Rajoy, o anterior governo socialista deixou derrapar o défice do ano passado dos 6% do PIB acordados com Bruxelas para 8,5%, o que imporia, um ajustamento de 4,1 pontos percentuais, um objecto completamente impraticável num ano. Sobretudo num país com 5 milhões de desempregados e uma previsão de recessão económica de 1,7%.
Segunda-feira à noite, os ministros das finanças do euro anuíram. Insistiram com Madrid para cumprir a meta não deste ano, mas a de 2013, altura em que o país deverá ter um défice abaixo do tecto de 3% do PIB previsto no pacto de estabilidade. Provavelmente para salvar a face, pediram a Madrid para tentar, fazer, este ano, um esforço adicional face ao previsto "da ordem dos 0,5% do PIB", embora sublinhando que não há qualquer obrigação de resultado.
Ou seja, os ministros decidiram ser pragmáticos e reconhecer que não podiam efectivamente pedir a Espanha um esforço da amplitude do que estaria implícito numa redução do défice de 8,5% do PIB para 4,4%, sob pena de condenar o país a uma espiral recessiva durante vários anos. Mas também porque ninguém acreditaria que Madrid pudesse fazer um ajustamento dessa ordem. De facto, a flexibilização da meta orçamental espanhola ajudou a credibilizar a estratégia de ajustamento de Rajoy.
Moral da história: parece-me óbvio que a meta para o défice espanhol tinha de ser flexibilizada. Os ministros tiveram razão em ser pragmáticos e em ter em conta a degradação da situação económica.
Mas então, para que é que nos encheram a cabeça com sanções mais expeditas e automáticas, se acabaram por cair na mesma negociação política que em 2003?
Com a agravante que, uma vez mais, impuseram uma verdadeira humilhação à Comissão Europeia, apesar de terem prometido e jurado que os seus poderes de "polícia" da consolidação orçamental foram reforçados com o Six Pack, precisamente para evitar que os governos - sobretudo os maiores - impusessem os seus pontos de vista. É por isso, aliás, que a regra determina que é a Comissão quem tem de propor como resolver o tipo de problemas como o que foi suscitado pela Espanha, devendo os ministros decidir com base nas suas propostas.
Não foi nada disso que aconteceu: os ministros decidiram sem qualquer proposta na mesa e, pior, decidiram contra a vontade da Comissão, que queria esperar pelas explicações de Madrid sobre as razões da derrapagem do ano passado - que só chegarão a Bruxelas no fim do mês - antes de fazer qualquer proposta.
De facto, não tenho a certeza de ter percebido.