quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A viragem dos defensores do não

Vários deputados socialistas franceses defensores do “não” à Constituição Europeia explicaram esta semana no Libération as razões da sua viragem a 180 graus, que se traduz agora no apoio ao Tratado de Lisboa.

É um curioso exercício de contorcionismo político que merece ser assinalado, porque a maioria dos argumentos utilizados já se aplicava à Constituição. Extractos (a tradução é minha).

(...)

“O Tratado de Lisboa deve ser avaliado pelo que é: um texto cujo único objecto é tentar melhorar o funcionamento das instituições da União (1). Desta forma foi suprimida a terceira parte do tratado constitucional que tinha o efeito de “gravar na pedra” o conjunto das políticas europeias mais liberais (2). Além disso, o texto agora proposto já não tem valor de constituição. Não é mais do que um tratado “modificador” clássico que altera os tratados existentes, sem os substituir. Aprová-lo não quer dizer que damos o nosso beneplácito ao conjunto da construção europeia, como implicaria implicitamente a adopção do tratado constitucional.

O tratado de Lisboa permitirá fluidificar o funcionamento da engrenagem da União, gripada por um alargamento a vinte e sete Estados membros tão mal preparado e um tratado de Nice tão mal negociado? É forçoso constatar que mesmo se os bloqueios institucionais não explicam só por si a impotência da União, as inovações do Tratado serão bem vindas: um presidente do conselho europeu eleito por dois anos, um alto representante para os assuntos externos e a política de segurança com poderes reforçados e, no seio do conselho de ministros, um novo mecanismo de votação por maioria qualificada (3). Além disso, devemos regozijar-nos pelo facto de, entre os valores citados em preâmbulo, serem acrescentados os da não-discriminação, da justiça, da solidariedade e da igualdade entre homens e mulheres (4), e que, entre os objectivos da União, seja retirada a concorrência livre e não falseada (5). Finalmente, um protocolo sobre os serviços públicos permite criar uma base jurídica para a adopção de uma directiva-quadro sobre os serviços públicos, recusada até agora pela Comissão (6).

No entanto, o contexto é igualmente determinante. O que motivou, em 2005, a nossa oposição ao tratado constitucional, foi a falta de Europa. O que justificava a nossa estratégia era que podíamos apoiar-nos no não para exigir mais Europa, onde ela é necessária. Em 2005, a esquerda francesa tinha a perspectiva de uma vitória nas eleições presidenciais (7). O que lhe teria permitido conduzir a negociação e assumir depois a presidência francesa da União que tem início em Junho. Já não é assim. O que significa que a estratégia desenvolvida na altura se tornou caduca. Houve efectivamente uma renegociação, como nós diziamos, mas foi Nicolas Sarkozy que a fez e que lhe retirou a força. Hoje é preciso votar sobre o texto, e não sobre aquele que imaginávamos. Se o Tratado de Lisboa não for adoptado, ficaremos com o Tratado de Nice, e por muito tempo” (8).


(...)


(1) Já era o caso da Constituição, sobretudo do ponto de vista da França

(2) Falso: a parte III da Constituição era simplesmente a compilação dos Tratados existentes num só texto para melhorar a coerência e visibilidade das políticas. O facto de não estar no Tratado de Lisboa não significa que desapareceu, ficou foi dispersa nos vários Tratados em vigôr

(3) Já era rigorosamente o caso da Constituição. A única diferença é que no texto anterior o alto representante para a política externa se chamava ministro dos negócios estrangeiros

(4) Já estavam na Constituição

(5) A concorrência livre e não falseada sai efectivamente dos objectivos da União (passaremos a ter uma concorrência falseada???), mas essa característica central do mercado interno é lembrada num protocolo anexo ao Tratado

(6) Há de facto um protocolo nesse sentido, mas saber se altera de facto alguma coisa é outra história

(7) Será que, afinal de contas, o não à constituição não passou de uma estrategiazinha de conquista do poder ?

(8) Já era o caso com a rejeição da Constituição

10 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo texto.

A posição dos deputados é absurda. Se fossem honestos teriam dito que mudaram pura e simplesmente de posição, mais nada.

Há um dos argumentos que acho piada, a de que o tratado já não é uma Constituição, isto é, um texto que compila e substitui os anteriores.

Por uma questão de clareza era extremamente útil que se revogassem os tratados anteriores e, em troca, se aprovasse um tratado único com todas as disposições em vigor. Se se chamasse a este Tratado Constituição ou não, era um pormenor de pouca importância.

O importante é a história da diminuição do número de comissários, o fim das presidências rotativas o altorepesentanteministrodosnegociosestrangeiros, o poder da União assinar tratados em nome dos seus membros, etc., etc. em suma o aumentar do desiquilíbrio de poderes.

O resto é secundário... a UE tem uma bandeira? e depois? as Nações Unidas, o Benfica e até o Clube Desportivo de Boliqueime também têm bandeiras...

Esta história de se dizer que o Tratado de Lisboa é totalmente diferente do Tratado Constitucional porque já não é uma Constituição é só uma manobra de diversão para enganar o papalvo...

Isabel Arriaga e Cunha disse...

Raio, que surpresa! Por uma vez estamos (quase) de acordo. Extraordinário ! Parabéns pelo comentário

""#$ disse...

IAC:Bom texto.

Deputados socialistas franceses: um exemplo claro do que é a União e do que é a estrutura de poder da União que até dá para estes senhores brincarem às mudanças de posição com a maior lata possível.

O ponto 4 é hilariante, embora reste saber se a expressão livre concorrência não falseada, não é mais um jargão disfarçado de liberalismo económico à moda dos EUA.
Reparo pela suas notas que existe um protocolo anexo nas portas das traseiras a definir o que não se teve coragem de meter pela porta da frente...

O seu ponto 6 é simbólico de tudo o que me desagrada no Tratado e na Ideia de constituição europeia.

Se for feita uma norma a retirar qualquer direitos a um cidadão europeu ou a flexibilizar partes e económicas e alguém a contestar estará a ir contra "o espírito europeu".

Se for criada uma norma a definir direitos sociais, aí, ainda estará para ver-se se essa norma será de facto aplicada....

O que quer dizer que é a economia que prevalece sobre a política e não o contrário.

Isso é o oposto de qualquer bom e saudável tratado/constituição a ser feito.

O ponto 7 significa que os deputados socialistas franceses desejam alistar-se no partido de Sarkosy mas tem vergonha de pedir a adesão.

O ponto 8, como a IAC salienta é uma graçola filosófica dos deputados em questão.É para ver se nós não estamos distraídos e não conseguimos reparar no que é uma tautologia.

Mas de qualquer forma bom texto.

Ler o que palhaços políticos de esquerda?!, mesmo franceses, escrevem quando tentam dizer coisas cómicas e absurdas "é porreiro ,pá".

Anónimo disse...

O PS francês bateu no fundo... E está a precisar de uma terapia de grupo... Talvez mandá-los todos numa excursão ao Tibete para reencontrarem um pouco de identidade.

Entretanto desculpem lá mudar de tema mas uma boa noticia: devido ao caso da expulsão dos Roma Romenos de Italia, e mais precisamente a comentários xenofobos contra os Romenos feitos por Alexandra Mussolini (deputada parlamentar e neta do Benedito), os representantes do partido nacionalista romeno no PE, deixaram o grupo parlamentar de extrema direita ITS (Identidade, Tradição e Soberania) de que Mussolini tambem faz parte. Assim, o grupo perde os deputados suficientes para continuar a funcionar como tal.

Ao menos uma boa noticia no meio desta sordida novela...

Anónimo disse...

IAC,

Merci/bedankt (enquanto que a comunidade em que vive é bilingue) pelo cumprimento.

Acho que se não nos irritarmos podemos estar de acordo em muitos pontos.

Isabel Arriaga e Cunha disse...

Bernardo,
Essa é verdadeiramente uma boa notícia. Obrigada

Anónimo disse...

Bernardo,

"...uma boa noticia: devido ao caso da expulsão dos Roma Romenos de Italia, e mais precisamente a comentários xenofobos contra os Romenos feitos por Alexandra Mussolini...Assim, o grupo perde os deputados suficientes para continuar a funcionar como tal."

Não é uma boa notícia, é uma péssima notícia, é um sinal preocupante do aumento da xenofobia e da extrema direita na Europa.

Um dos meus passatempos é ir à Biblioteca Nacional lêr jornais e revistas antigos, isto complementado por leituras na Internet e também de livros da primeira metade do Século passado, das bibliotecas dos meus avós ou do meu Pai.

O que me mostram estas leituras é que a II Grande Guerra não foi uma guerra entre países, foi uma guerra ideológica.

Em todos os países existiam partidários da Hitler e da extrema direita, desde Sir Oswald Mosley no Reino Unido até às Croix-de-feu em França.

Isto sem contar que as germanicas SS tinham gente de todas as nacionalidades. Curiosamente vi uma vez uma lista e a única que faltava era a portuguesa... acho que era erro, algum havia de lá estar.

O que está agora a acontecer, exaberbado pelos adeptos incondicionais de uma integração cada vez mais profunda irá certamente dar o mesmo resultado.

Estamos portanto em presença de uma péssima notícia...

Anónimo disse...

Caro Raio

A boa noticia é o desaparecimento do grupo de extrema direita do Parlamento Europeu, não o aumento dos casos de repressão indiscriminada sobre os Roma como é óbvio...

Anónimo disse...

Caro Bernardo,

Calar administrativamente o adversário só o fortalece!

Anónimo disse...

Ninguém calou niguém. Os tipos zangaram-se, é tudo. Eles continuam no Parlamento mas nao beneficiam do facto de serem um grupo parlamentar.

Também era de esperar. O denominador comum aqui era o xenofobismo. Mas xenofobos por natureza nao se dao com outras nacionalidades, mesmo que tenham as mesmas ideais de base.