Esta é a versão quase completa da entrevista (publicada no Público de hoje em versão reduzida) que fiz a Sylvie Goulard, eurodeputada centrista de 45 anos, presidente do Movimento Europeu francês e autora de vários livros sobre a construção europeia. O seu "L'Europe pour les Nuls" (não traduzido para português) valeu-lhe o Prémio Europeu do Livro-2009. Nele, Goulard, que dedicou a sua vida académica e profissio
nal à Europa, prova que é possível explicar a União Europeia de forma exaustiva e séria, mas bem humorada.
P: Como é que se explica que os lideres da União Europeia (UE) tenham escolhido um presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, com um perfil “comunitário”, em vez de Tony Blair e o seu modelo de cooperação intergovernamental?
R: Os lideres perpetuam uma mentira sobre a Europa, fazem crer que a Europa comunitária não é necessária e que o modelo intergovernamental funciona melhor. Mas sabem muito bem que não é verdade e que o método comunitário é o único que permite trabalhar a Vinte e Sete. Penso que escolheram um presidente comunitário porque não era muito conhecido. O que significa que podem aceitar um presidente comunitário desde que seja discreto.
P: Van Rompuy está a marcar a agenda, mas não estará a entrar no espaço da Comissão Europeia?
A Comissão pôs-se sozinha num canto. Durão Barroso tinha cinco anos para assumir iniciativas. Por exemplo, a supervisão financeira: em 2007 depois da crise dos “subprimes” nos Estados Unidos vários banqueiros e financeiros avisaram para os problemas que se anunciavam, e a Comissão Barroso não fez nada. Repare-se, também, na teimosia com que quis aplicar a Estratégia de Lisboa, que não assenta em nenhum instrumento vinculativo, e que está nos antípodas dos seus poderes. A Comissão não aplicou o método comunitário, auto-flagelou-se durante cinco anos e chegou ao fim extremamente enfraquecida. Eu pessoalmente defendo um reforço da Comissão, penso que temos todos interesse em ter uma Comissão forte, mas a natureza tem horror do vazio e se Durão Barroso não ocupar o espaço que lhe compete em termos de propostas, e se o Conselho Europeu tiver um presidente com ideias mais precisas, vai marcar pontos.
P: Durão Barroso acredita que na UE a Vinte e Sete a Comissão tem de ser menos voluntarista do que a Doze ...
R: Não estou de todo de acordo, e penso mesmo o contrário: quanto mais numerosos forem os Estados membros, maior será a necessidade de um árbitro neutro no jogo. A Comissão pode ser mais poderosa com Vinte e Sete Estados do que com menos. Basta lembrarmo-nos que Jean Monnet inventou o método
comunitário depois de ver que a Sociedade das Nações não funcionava. De todos os modos, mesmo quando eram seis países não é verdade que as coisas funcionavam bem, isso é uma ilusão absoluta, nunca houve um momento na história comunitário em que tudo funcionava bem. A tentação dos Estados de guardar o poder, ou de não aceitar o papel da Comissão é permanente. Mas pensar que nos vamos pôr mais facilmente de acordo a Vinte e Sete sem o impulso da Comissão enquanto garante dos direitos dos pequenos e dos interesses de todos na definição do ponto de equilíbrio, é uma ilusão completa.
P: Mas será que se pode ainda falar de União Política em 2010?
R: É preciso que as pessoas vão até Pequim, Nova Deli ou Washington e vejam o Mundo como ele é. Se não nos unirmos, se não apagarmos as diferenças mínimas existentes entre os países europeus para defendermos os nossos valores e os nossos interesses no Mundo, não iremos a lado nenhum. Os chineses executaram durante a época do Natal um britânico que era provavelmente mentalmente diminuído. O que é que queremos para o Mundo de amanhã? Um Mundo em que não podemos exprimir os nossos valores face à China ? Prefiro ter Durão Barroso – mesmo se votei contra ele como presidente da Comissão – porque sei que num certo número de coisas estamos relativamente próximos, do que avançar desorganizados face aos chineses, indianos ou americanos. Creio que a chegada de Obama marca uma viragem na história do Mundo. Os americanos vão virar a página da Europa e vão considerar que asseguram a segurança, a paz e a estabilidade e que o futuro está no Pacífico. E nós temos de ser capazes de nos organizar como fizemos com o euro – e não devemos falar apenas do que não funciona, fomos capazes nos últimos vinte anos de tomar decisões estratégicas como o euro e fizemo-lo com o método comunitário e mesmo com elementos federais. Uma vez mais, e voltando à ideia da Europa intergovernamental, creio que estamos no fim de um ciclo que era pro-intergovernamental e cujos limites foram visíveis por exemplo em Copenhaga, em que a Europa não estava na negociação decisiva sobre o clima. Prefiro uma Europa federal com europeus que existam e se exprimam, do que uma Europa intergovernamental da qual nos dizem que nos poderá fazer sair dos problemas mas que não o faz, e que nos deixa com a Estratégia de Lisboa inacabada, com a crise económica e com as alterações climáticas.
P: Mas quem vai liderar esse processo?
R: Não podemos ser dogmáticos, não se trata de construir os Estados Unidos da Europa sob o modelo dos Estados Unidos. Isso podemos esquecer, mas não quer dizer que não possamos ser criativos. Vejamos o euro: inventámos uma coisa que nunca ninguém tinha feito e que nos ajudou enormemente durante a crise. Porquê? Porque temos um Banco Central Europeu federal. Se tivéssemos governos com a coragem de fazer a pedagogia do que isso nos trouxe de positivo, talvez a palavra assustasse menos. Mas o termo não é importante, o que é importante agora é que se institua uma coordenação forte das políticas económicas, que se avance na investigação, inovação, política industrial e grandes equipamentos colectivos, ou seja, que se desenvolvam políticas verdadeiramente europeias. É isso que me interessa na Europa, é preciso vendâ-la assim aos cidadãos, e dizer-lhes: vocês participam numa construção que não se sabe bem onde chegará, mas que é a única tentativa no Mundo de fazer trabalhar em conjunto países grandes e pequenos e de o fazer num quadro que é democrático porque temos o Parlamento Europeu que é eleito por sufrágio directo e universal. Creio que o futuro da Europa está no Parlamento – não sozinho, porque tem os defeitos que tem – em conjunto com a Comissão num quadro de reforço mútuo para porem os Estados perante as suas responsabilidades.
P: Pensa que Durão Barroso está nesse linha?
R: Bom, eu votei contra ele [em Setembro], mas penso que desde então não se sai mal de todo. Quero dar-lhe a sua oportunidade. Penso que compôs a nova Comissão de forma bastante equilibrada, mas é preciso agora que prove que toma iniciativas. Há muito a fazer, e ele tem uma oportunidade incrível na nova Comissão de perceber e rectificar o tiro. Creio que é importante que as pessoas relaxem um pouco, e que não pensem que o método comunitário é algo que os fará desaparecer. A prova, o facto de Barroso ser presidente da Comissão deveria ser uma razão para os portugueses acreditarem no sistema. A crítica mais frequente contra o sistema é que não deixa lugar aos pequenos, mas não é verdade, o método comunitário garante aos pequenos um lugar muito maior na UE do que o método intergovernamental. Um dos erros dos pais fundadores da UE foi nunca terem feito a pedagogia do que tinham em mente. O método comunitário é uma coisa muito complexa mas muito inteligente, que supõe que é explicada às pessoas.
P: Como é que vê a chegada dos conservadores de David Cameron ao governo no Reino Unido?
R: Penso que infelizmente vão perpetuar a ambiguidade. Eu respeito as escolhas soberanas: se alguém não gosta da UE e não quer lá estar, pode aproveitar o facto de o Tratado de Lisboa ter uma disposição que permite a quem quiser sair. Mas se decidem ficar, têm de respeitar o dever de lealdade que já foi várias vezes reafirmando pelo Tribunal de Justiça. É preciso respeitar as instituições, respeitar a UE e parar de lhe bater. E isso é válido para todos os países. O papel de um governo nacional é explicar a UE aos seus cidadãos, assumindo a crítica quando necessário. Só que é muito fácil bater na Europa. O que me preocupa [nos conservadores britânicos] é que aparentemente mantém a sua dupla linguagem: internamente criticam imenso a Europa, mas não têm a menor intenção de perder as vantagens do mervado interno ou renunciar ao seu lugar nas instituições comunitárias. É por isso também que defendo uma abordagem muito mais dinâmica da zona euro: é preciso que continuemos a ousar fazer projectos, e os que querem juntar-se, juntam-se, enquanto que os que decidem soberanamente não o fazer não podem impedir os outros de avançar. Se déssemos esse sinal, eles mudariam imediatamente de opinião. Temos o melhor produto que existe, mas o vendedor esqueceu-se de o vender.
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PS: Já agora, e a propósito de um comentário recente - e escandalizado - do Raio, a decisão de Van Rompuy de correr com os Ministros dos Negócios Estrangeiros das cimeiras europeias não foi uma decisão arbitrária, mas simplesmente a aplicação das disposições do Tratado de Lisboa. Diz o novo Tratado no seu artigo 15º-2. -
"O Conselho Europeu é composto pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados membros, bem como pelo seu presidente e pelo presidente da Comissão. O alto representante [para a política externa] (...) participa nos seus trabalhos".
O parágrafo 3 do mesmo artigo, estipula que "quando a ordem do dia o exige, os membros do Conselho Europeu podem decidir ser assistidos por um ministro cada um (...)".