terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Durão Barroso fora de jogo?

Durão Barroso não está nos seus melhores momentos face aos governos da União Europeia, e não dá sinais de melhoras.

Há duas semanas, na cimeira especial de lideres da UE quase integralmente consagrada à crise da dívida na Grécia, Barroso esteve totalmente ausente das negociações sobre o texto da declaração política de solidariedade com Atenas. Nos mais de vinte anos em que acompanhado a actualidade europeia em Bruxelas, não me lembro de alguma vez um compromisso importante negociado entre chefes de Estado ou de Governo não ter sido pilotado pelo presidente da Comissão Europeia.

Desta vez, o texto aprovado pelos Vinte e Sete foi integralmente preparado por Herman Van Rompuy, presidente do Conselho Europeu, sem qualquer intervenção de Barroso. Os seus termos foram propostos por Van Rompuy durante a reunião que convocou na própria manhã da cimeira (e que provocou aliás um atraso de três horas no seu arranque) entre Angela Merkel, chanceler federal da Alemanha, Nicolas Sarkozy, presidente francês e George Papandreou, primeiro ministro grego. A contribuição de Durão Barroso não foi considerada necessária. É mau sinal.

Depois foi a decisão surpresa anunciada na semana passada sobre a nomeação de João Vale de Almeida, ex-chefe de gabinete de Barroso, para embaixador da UE em Washington: na segunda-feira, vários ministros dos Negócios Estrangeiros protestaram por não terem sido consultados. A irritação compreende-se: os antigos representantes da Comissão nos países terceiros, Estados Unidos incluídos, passaram, com o Tratado de Lisboa, a ser embaixadores da totalidade da UE. O que significa que este tipo de nomeações passou desde a sua entrada em vigor (1 de Dezembro de 2009) a competir não ao presidente da Comissão, mas à alta representante para a política externa, Catherine Ashton, enquanto chefe do futuro Serviço Europeu de Acção Externa (SEAE).

Os próximos de Barroso bem podem tentar justificar a decisão com o argumento de que a importância das relações transatlânticas não permitiria manter mais tempo a embaixada europeia em Washington desocupada (o anterior embaixador saiu em Outubro), mas o argumento não colhe: Vale de Almeida só assumirá funções no Verão. O que significa que a nomeação do novo embaixador poderia ter sido feita em Abril, ou Maio, altura em que é suposto o SEAE estar totalmente operacional. E os governos sabem muito bem que a nomeação precipitada – e surpreendente – de Vale de Almeida se destinou a permitir-lhe sair por cima na guerra que lhe estava a ser movida pelos Estados no processo de criação do SEAE. Barroso, pelo contrário, sai por baixo com a manobra.

Há dias um dos analistas mais conceituados em Bruxelas – cuja identidade não posso revelar – afirmou numa conferência que Barroso foi literalmente cilindrado por Nicolas Sarkozy durante a presidência francesa da UE, no segundo semestre de 2008, e que ainda não se conseguiu recompor. Parace-me que os factos lhe dão razão.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Barroso II

Será que Durão Barroso tem uma ideia clara do que quer fazer no segundo mandato que hoje arrancou? Se não tem é bom que se defina rapidamente, sob pena de a Comissão Europeia ser cilindrada por Herman Van Rompuy, o presidente do Conselho Europeu que, pelo contrário, sabe bem o que quer.

Pelo que tem dito nos últimos tempos, as ideias de Barroso parecem ser mais do mesmo. Nada faz por agora prever que a Comissão está disposta a sair da postura essencialmente reactiva que marcou o seu primeiro mandato.

Barroso dispõe de uma maioria aritmeticamente confortável no PE – 66 por cento dos 736 eurodeputados, ou 70 por cento dos votos expressos, como se quiser – para arriscar ser um pouco mais ousado e criativo nas suas iniciativas.

Ao seu serviço tem a mais original das instituições europeias, que acumula um direito exclusivo de iniciativa legislativa com a responsabilidade de gerir e aplicar as políticas comunitárias e impor o cumprimento do direito europeu. Que conta com mais de 20 mil funcionários na sua maior parte altamente qualificados, muitíssimo bem pagos e com capacidade e motivação para gerar as ideias, os debates e as reflexões para a formulação das propostas e as políticas que permitam à UE enfrentar os problemas com que se depara nas próximas décadas.

O problema está em que Barroso, e os seus próximos, parecem ter horror do debate e da criatividade. Basta ver como são afastados os jornalistas que ousam duvidar, questionar ou criticar a sua presidência, ou mesmo que não mencionam suficientemente o seu nome nos artigos que escrevem sobre a UE.

Muitos eurocratas estão profundamente frustrados com o papel de burocratas a que têm sido confinados tanto pelas regras internas de funcionamento da Comissão, como pela resistência das suas estruturas dirigentes ao desenvolvimento de ideias. Eu sei que é irrisório regressar sistematicamente ao passado, mas os funcionários dos anos 1980 e 1990 lembram com nostalgia o hábito que Jacques Delors tinha de entrar regularmente nos diferentes serviços da Comissão, reunir os funcionários que considerava qualificados (independentemente das hierarquias) e reflectir com eles sobre os problemas do momento. Eram verdadeiros “brain stormings” em que a inteligência e os talentos eram solicitados. Não foi por acaso que esta foi uma das épocas mais férteis da construção europeia...

É de esperar que Barroso abandone rapidamente a sua aversão ao risco e se disponha a ir muito além da simples gestão burocrática das circunstâncias. Caso contrário ameaça a sua instituição e, mais ainda, o projecto europeu.

Está na hora de começarmos a perceber porque é que Barroso quis abandonar o governo português para presidir à Comissão Europeia...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Durão Barroso tem “uma oportunidade incrível de rectificar o tiro” na nova Comissão

Esta é a versão quase completa da entrevista (publicada no Público de hoje em versão reduzida) que fiz a Sylvie Goulard, eurodeputada centrista de 45 anos, presidente do Movimento Europeu francês e autora de vários livros sobre a construção europeia. O seu "L'Europe pour les Nuls" (não traduzido para português) valeu-lhe o Prémio Europeu do Livro-2009. Nele, Goulard, que dedicou a sua vida académica e profissional à Europa, prova que é possível explicar a União Europeia de forma exaustiva e séria, mas bem humorada.

P: Como é que se explica que os lideres da União Europeia (UE) tenham escolhido um presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, com um perfil “comunitário”, em vez de Tony Blair e o seu modelo de cooperação intergovernamental?

R: Os lideres perpetuam uma mentira sobre a Europa, fazem crer que a Europa comunitária não é necessária e que o modelo intergovernamental funciona melhor. Mas sabem muito bem que não é verdade e que o método comunitário é o único que permite trabalhar a Vinte e Sete. Penso que escolheram um presidente comunitário porque não era muito conhecido. O que significa que podem aceitar um presidente comunitário desde que seja discreto.

P: Van Rompuy está a marcar a agenda, mas não estará a entrar no espaço da Comissão Europeia?
A Comissão pôs-se sozinha num canto. Durão Barroso tinha cinco anos para assumir iniciativas. Por exemplo, a supervisão financeira: em 2007 depois da crise dos “subprimes” nos Estados Unidos vários banqueiros e financeiros avisaram para os problemas que se anunciavam, e a Comissão Barroso não fez nada. Repare-se, também, na teimosia com que quis aplicar a Estratégia de Lisboa, que não assenta em nenhum instrumento vinculativo, e que está nos antípodas dos seus poderes. A Comissão não aplicou o método comunitário, auto-flagelou-se durante cinco anos e chegou ao fim extremamente enfraquecida. Eu
pessoalmente defendo um reforço da Comissão, penso que temos todos interesse em ter uma Comissão forte, mas a natureza tem horror do vazio e se Durão Barroso não ocupar o espaço que lhe compete em termos de propostas, e se o Conselho Europeu tiver um presidente com ideias mais precisas, vai marcar pontos.

P: Durão Barroso acredita que na UE a Vinte e Sete a Comissão tem de ser menos voluntarista do que a Doze ...

R: Não estou de todo de acordo, e penso mesmo o contrário: quanto mais numerosos forem os Estados membros, maior será a necessidade de um árbitro neutro no jogo. A Comissão pode ser mais poderosa com Vinte e Sete Estados do que com menos. Basta lembrarmo-nos que Jean Monnet inventou o método comunitário depois de ver que a Sociedade das Nações não funcionava. De todos os modos, mesmo quando eram seis países não é verdade que as coisas funcionavam bem, isso é uma ilusão absoluta, nunca houve um momento na história comunitário em que tudo funcionava bem. A tentação dos Estados de guardar o poder, ou de não aceitar o papel da Comissão é permanente. Mas pensar que nos vamos pôr mais facilmente de acordo a Vinte e Sete sem o impulso da Comissão enquanto garante dos direitos dos pequenos e dos interesses de todos na definição do ponto de equilíbrio, é uma ilusão completa.

P: Mas será que se pode ainda falar de União Política em 2010?

R: É preciso que as pessoas vão até Pequim, Nova Deli ou Washington e vejam o Mundo como ele é. Se não nos unirmos, se não apagarmos as diferenças mínimas existentes entre os países europeus para defendermos os nossos valores e os nossos interesses no Mundo, não iremos a lado nenhum. Os chineses executaram durante a época do Natal um britânico que era provavelmente mentalmente diminuído. O que é que queremos para o Mundo de amanhã? Um Mundo em que não podemos exprimir os nossos valores face à China ? Prefiro ter Durão Barroso – mesmo se votei contra ele como presidente da Comissão – porque sei que num certo número de coisas estamos relativamente próximos, do que avançar desorganizados face aos chineses, indianos ou americanos. Creio que a chegada de Obama marca uma viragem na história do Mundo. Os americanos vão virar a página da Europa e vão considerar que asseguram a segurança, a paz e a estabilidade e que o futuro está no Pacífico. E nós temos de ser capazes de nos organizar como fizemos com o euro – e não devemos falar apenas do que não funciona, fomos capazes nos últimos vinte anos de tomar decisões estratégicas como o euro e fizemo-lo com o método comunitário e mesmo com elementos federais. Uma vez mais, e voltando à ideia da Europa intergovernamental, creio que estamos no fim de um ciclo que era pro-intergovernamental e cujos limites foram visíveis por exemplo em Copenhaga, em que a Europa não estava na negociação decisiva sobre o clima. Prefiro uma Europa federal com europeus que existam e se exprimam, do que uma Europa intergovernamental da qual nos dizem que nos poderá fazer sair dos problemas mas que não o faz, e que nos deixa com a Estratégia de Lisboa inacabada, com a crise económica e com as alterações climáticas.

P: Mas quem vai liderar esse processo?

R: Não podemos ser dogmáticos, não se trata de construir os Estados Unidos da Europa sob o modelo dos Estados Unidos. Isso podemos esquecer, mas não quer dizer que não possamos ser criativos. Vejamos o euro: inventámos uma coisa que nunca ninguém tinha feito e que nos ajudou enormemente durante a crise. Porquê? Porque temos um Banco Central Europeu federal. Se tivéssemos governos com a coragem de fazer a pedagogia do que isso nos trouxe de positivo, talvez a palavra assustasse menos. Mas o termo não é importante, o que é importante agora é que se institua uma coordenação forte das políticas económicas, que se avance na investigação, inovação, política industrial e grandes equipamentos colectivos, ou seja, que se desenvolvam políticas verdadeiramente europeias. É isso que me interessa na Europa, é preciso vendâ-la assim aos cidadãos, e dizer-lhes: vocês participam numa construção que não se sabe bem onde chegará, mas que é a única tentativa no Mundo de fazer trabalhar em conjunto países grandes e pequenos e de o fazer num quadro que é democrático porque temos o Parlamento Europeu que é eleito por sufrágio directo e universal. Creio que o futuro da Europa está no Parlamento – não sozinho, porque tem os defeitos que tem – em conjunto com a Comissão num quadro de reforço mútuo para porem os Estados perante as suas responsabilidades.

P: Pensa que Durão Barroso está nesse linha?

R: Bom, eu votei contra ele [em Setembro], mas penso que desde então não se sai mal de todo. Quero dar-lhe a sua oportunidade. Penso que compôs a nova Comissão de forma bastante equilibrada, mas é preciso agora que prove que toma iniciativas. Há muito a fazer, e ele tem uma oportunidade incrível na nova Comissão de perceber e rectificar o tiro. Creio que é importante que as pessoas relaxem um pouco, e que não pensem que o método comunitário é algo que os fará desaparecer. A prova, o facto de Barroso ser presidente da Comissão deveria ser uma razão para os portugueses acreditarem no sistema. A crítica mais frequente contra o sistema é que não deixa lugar aos pequenos, mas não é verdade, o método comunitário garante aos pequenos um lugar muito maior na UE do que o método intergovernamental. Um dos erros dos pais fundadores da UE foi nunca terem feito a pedagogia do que tinham em mente. O método comunitário é uma coisa muito complexa mas muito inteligente, que supõe que é explicada às pessoas.

P: Como é que vê a chegada dos conservadores de David Cameron ao governo no Reino Unido?

R: Penso que infelizmente vão perpetuar a ambiguidade. Eu respeito as escolhas soberanas: se alguém não gosta da UE e não quer lá estar, pode aproveitar o facto de o Tratado de Lisboa ter uma disposição que permite a quem quiser sair. Mas se decidem ficar, têm de respeitar o dever de lealdade que já foi várias vezes reafirmando pelo Tribunal de Justiça. É preciso respeitar as instituições, respeitar a UE e parar de lhe bater. E isso é válido para todos os países. O papel de um governo nacional é explicar a UE aos seus cidadãos, assumindo a crítica quando necessário. Só que é muito fácil bater na Europa. O que me preocupa [nos conservadores britânicos] é que aparentemente mantém a sua dupla linguagem: internamente criticam imenso a Europa, mas não têm a menor intenção de perder as vantagens do mervado interno ou renunciar ao seu lugar nas instituições comunitárias. É por isso também que defendo uma abordagem muito mais dinâmica da zona euro: é preciso que continuemos a ousar fazer projectos, e os que querem juntar-se, juntam-se, enquanto que os que decidem soberanamente não o fazer não podem impedir os outros de avançar. Se déssemos esse sinal, eles mudariam imediatamente de opinião. Temos o melhor produto que existe, mas o vendedor esqueceu-se de o vender.

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PS: Já agora, e a propósito de um comentário recente - e escandalizado - do Raio, a decisão de Van Rompuy de correr com os Ministros dos Negócios Estrangeiros das cimeiras europeias não foi uma decisão arbitrária, mas simplesmente a aplicação das disposições do Tratado de Lisboa. Diz o novo Tratado no seu artigo 15º-2. -

"O Conselho Europeu é composto pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados membros, bem como pelo seu presidente e pelo presidente da Comissão. O alto representante [para a política externa] (...) participa nos seus trabalhos".

O parágrafo 3 do mesmo artigo, estipula que "quando a ordem do dia o exige, os membros do Conselho Europeu podem decidir ser assistidos por um ministro cada um (...)".