domingo, 17 de março de 2013

Brincar com o fogo

A lista dos erros cometidos na gestão da crise do euro conta a partir de sábado, 16 de Março, com mais duas pérolas assumidas no programa de assistência financeira a Chipre.

Aparentemente sem estados de alma, os ministros das finanças do euro rebentaram com dois tabus que, até sábado, pareciam absolutos (ver a propósito a edição do PÚBLICO de domingo 17 de Março).

O primeiro tabu que saltou foi o novo envolvimento dos privados num programa de assistência financeira.

Até sábado, a zona euro garantia a pés juntos que os privados só seriam chamados a participar no financiamento da Grécia, o que aconteceu em 2012 com as perdas infligidas em duas ocasiões aos detentores da sua dívida pública. Aqui, os privados foram sobretudo bancos, fundos de investimento e outros instrumentos do mesmo tipo que, em muitos casos, especularam desenfreadamente sobre a falência da Grécia.

Com a ajuda a Chipre, este tabu caiu: os privados voltaram a ser chamados a participar. Só que desta vez, os privados não são os especuladores, mas os depositantes, todos os depositantes nos bancos cipriotas, qualquer que seja o montante das suas contas. Esta participação será feita através de uma taxa de 6,75% sobre os depósitos até 100.000 euros, e de 9,9% para os montantes superiores.

Esta taxa rebentou com o 2º tabu absoluto, que era a garantia assumida pelos Governos europeus de todos os depósitos até 100.000 euros. Esta regra foi instituída por todos os países da União Europeia (UE) em 2008, em plena crise financeira, para evitar uma corrida aos depósitos quando a totalidade do sistema financeiro europeu estava ameaçada de derrocada.

Note-se que a decisão de tributar agora os depósitos até 100.000 euros não foi tomada por Chipre, mas imposta pela zona euro. Senão, não havia ajuda. Note-se também que os accionistas dos bancos não foram tocados, nem os detentores da dívida do país. Mas os depositantes.

A partir daqui, podemos tirar duas conclusões óbvias. 

A primeira é que se o carácter exclusivo da participação dos privados no programa grego caiu, nada nos diz que estes não voltarão a ser chamados a participar no financiamento de outros programas de ajuda, por exemplo se Portugal, ou Espanha, precisarem de mais dinheiro. A excepção grega, prometida e jurada durante longos meses, durou apenas até Chipre.

A segunda conclusão  é que os depósitos bancários até 100.000 euros só estão garantidos até ser preciso encontrar dinheiro para financiar um programa de ajuda. 

Claro que os países do euro explicam que Chipre é um "caso específico" – não disseram que era "único", como sempre fizeram no caso da Grécia – por causa do seu sector bancário sobre-dimensionado – mais de 8 vezes superior ao valor do PIB – e da presença massiva de não residentes russos que beneficiam do paraíso fiscal da ilha. Mas será que os países do euro se esqueceram que o sistema bancário irlandês também está sobre-dimensionado e que a Espanha continua às voltas com a fragilidade dos seus bancos? 

A ideia peregrina de envolver os privados nos programas de ajuda, imposta por Angela Merkel em 2010, já fez várias vítimas da especulação financeira, a começar pela Irlanda, seguida de Portugal. Perante o desastre resultante, a Alemanha recuou. Deste recuo partiu a promessa de que a Grécia seria um caso único.

Mas, depois da quebra de duas promessas essenciais no sábado, como é que os cidadãos europeus – sobretudo os dos países mais frágeis – vão poder acreditar que as suas poupanças estão a salvo?

3 comentários:

Bernardo Rodrigues disse...

Cara Isabel,
Penso que ha dois problemas com os dois tabus que menciona no inicio do seu post.
Primeiro, percebo o seu ponto e concordo com o principio aberrante de fazer pagar os depositantes primeiro. Mas ha aqui uma circunstancia atenuante importante, que sao as taxas de juro alucinantes que os bancos chipriotas teem estado a oferecer. Enquanto que a maior parte das pessoas na UE teem taxas que nem cobrem a inflacao, os bancos chipriotas oferecem entre 5 e 7(!) % ao ano. Ou seja, esta taxa equivale a cerca de um ano de juros...

Quanto ao segundo tabu, a garantia dizia respeito a falencias. Aqui trata-se de uma taxa. Mais uma vez, percebo que seja mais uma questao de principio, mas vale a pena precisar.

Uma maneira de resolver as questoes de principio seria impor esta nova taxa apenas aos depositos dos estrangeiros, ja que e' claro que a unica razao para terem ali conta e' fiscal. Arriscaram, deveriam agora ser confrontados ao risco. Mas parece que mais uma vez vao ser as classes media e baixa a pagar (uma grande parte d') a conta.

Isabel Arriaga e Cunha disse...

Welcome back, Bernardo!

Sim, estou de acordo com tudo o que disse, é tudo verdade, mas mesmo assim, continuo estupefacta com o facto de a solução para Chipre mexer nos depósitos inferiores a 100 mil euros. Quebrar esta protecção parece-me um precedente muito grave, que pode ter consequências muito sérias em termos de fuga de capitais dos países que não estão livres de perigo de que uma coisa dessas lhes venha a acontecer um dia... Como Portugal.
Já não sei onde li, mas o autor tem razão, podiam ter poupado os depósitos de menos 100 mil euros aumentando um bocadinho, não muito, a taxa cobrada aos montantes superiores. Teria sido bem mais inteligente... Às vezes a miopia dos nossos líderes desespera-me....

Bernardo Rodrigues disse...

Segundo li no FT, o lider chipriota nao queria levar para casa taxas superior a 10%, por isso dividiu-se o mal pelas aldeias. Mal, como bem menciona. Parece que estao neste momento a renegociar e, espera-se, que aumentem a taxa das contas superiores a €100.000 e baixem a taxa nas contas normais. Vamos ver se resistem `as pressoes, porque nao devem ser poucas...