segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Galileo I: o acordo

A luz verde dos países europeus ao sistema de radio-navegação por satélite Galileo - concorrente do GPS americano - constitui um sucesso incontestável da presidência portuguesa da UE. Primeiro, a presidência conseguiu um acordo no dia 23 de Novembro sobre o encaixe de 2.400 milhões de euros suplementares no orçamento comunitário (em complemento dos 1.000 já previstos) para permitir o seu lançamento, depois do fracasso de uma tentativa de financiamento privado; depois, arrancou nos dias 29 e 30 um acordo sobre a partilha do mercado do projecto, que permitiu contentar todos os países com aspirações no domínio aeroespacial.

Sem estas decisões, o Galileo estava em risco de ser definitivamente enterrado, o que deveria ser confirmado na cimeira de lideres de 14 de Dezembro. Isto porque depois dos atrasos acumulados ao longo de cinco anos, o projecto deixaria de fazer sentido quando os americanos prevêem tornar operacional em 2011-2012 a terceira geração do GPS, com um grau de precisão de posicionamento equivalente à do Galileo, ou seja, menos de um metro – contra 10 a 20 metros do GPS actual.

O Galileo está assim em vias de permitir à Europa dar um novo salto tecnológico, criar dezenas de milhar de empregos, e garantir a sua independência estratégica numa altura em que a Russia, China e India estão igualmente a investir em força neste sector.

Não foi fácil lá chegar. Desde que a ideia foi lançada em 1999, o projecto começou por ser bloqueado pelos países mais “atlantistas”, liderados pelo Reino Unido e Holanda, que, incitados pelos Estados Unidos, arrastaram durante vários anos os pés relativamente ao lançamento de um concorrente directo do GPS. Depois, este e outros países recusaram desenvolver o projecto com fundos públicos, exigindo o recurso ao sector privado. Dois consórcios de empresas concorrentes que se apresentaram a concurso foram obrigados a juntar-se num só (EADS, Thales, Alcatel (França), Finmeccanica (Itália), Aena, Hispasat (Espanha), Inmarsat (Reino Unido) e TeleOp (Alemanha) de maneira a evitar rivalidades nacionais e garantir que todos teriam a sua fatia do bolo. O consórcio acabou no entanto por recusar assumir os riscos financeiros do projecto, exigindo uma garantia pública.

Uma vez abandonada a opção do financiamento privado em Maio passado, as discussões centraram-se desde então em saber como encaixar no orçamento comunitário um montante adicional e inesperado de 2.400 milhões de euros. Apesar de a totalidade deste montante poder sair da agricultura – em resultado de despesas orçamentadas mas não utilizadas devido à alta dos preços dos cereais – ou seja, sem implicar nem mais um euro de contribuições nacionais para Bruxelas, o acordo demorou a fazer o seu caminho. Por um lado, porque os países mais restritivos no plano orçamental (Reino Unido, Alemanha, Holanda, Suécia) consideravam esta transferência de verbas um precedente perigoso, e preferiam que as “sobras” fossem devolvidas às capitais.

O grande problema foi no entanto colocado pela Alemanha, que preferia um financiamento directo pelos países interessados, que dividiriam assim os benefícios industriais e comerciais do Galileo entre as suas empresas. Berlim temia que num ambiente de livre concorrência, a sua industria aeroespacial, que começa praticamente a dar os primeiro passos, fosse preterida em favor das empresas francesas, muitíssimo mais competitivas, que poderiam assim arrebanhar o essencial dos mercados. Os alemães votaram aliás sozinhos contra a solução orçamental.

Menos de uma semana depois, no conselho de ministros dos transportes da UE, o acordo final foi selado, desta vez com o apoio da Alemanha, graças a uma partilha minuciosa do mercado. Ou seja, para garantir trabalho para todas as empresas do sector, grandes ou pequenas, o projecto foi dividido em seis segmentos: satélites, lançadores, software, antenas em terra, centros de controle e gestão do conjunto. A regra adoptada é que nenhuma empresa poderá liderar mais de dois destes segmentos, e será obrigada a sub-contratar no exterior pelo menos 40 por cento do contrato (embora não às suas filiais). As empresas “chefe de grupo” poderão no entanto participar nos 40 por cento de trabalho sub-contratado nos outros segmentos.

Mesmo que os especialistas neguem – como negam –, esta é uma aplicação um pouco peculiar das regras comunitárias da concorrência. É certo que a legislação europeia prevê excepções às regras e a possibilidade de ajustes directos na atribuição de mercados públicos, mas nunca como agora um mercado foi tão detalhadamente partilhado. Os especialistas garantem que não é possível saber de antemão quem é que conseguirá apanhar qual mercado, mas também reconhecem, por exemplo, que só a EADS Astrium (França, Alemanha, Reino Unido) estará em condições de fabricar os satélites; que a Arianespace (França), cujo operador industrial é igualmente a EADS, deverá ficar com os “lançadores”; que o controle em terra deverá ser desenvolvido pela Thales Alenia Space (França, Itália); que a Thales deverá ficar igualmente com o controle do sinal; ou que a TAS (Itália) poderá arrebanhar o software.

Há quem pense que esta decisão constitui "um sinal do que aí vem: uma tendência para a reequilibragem do projecto europeu a favor dos grandes países".

Mas vamos ser optimistas: o Galileo é um grande projecto europeu que, espero não me enganar, beneficiará toda a Europa. Cá estaremos para o avaliar.

PS: Tenho de me penitenciar por ter deixado este blog um pouco desactivado, mas confesso que a cobertura europeia a "full-time" - ou melhor, "triple-time" - não deixa grande espaço para o Eurotalk, com grande pena minha. Espero, ao menos, que tenham seguido a actualidade europeia através do Publico e prometo voltar com maior regularidade

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